Desafios da Alimentação nas Crianças: prevenir hoje a saúde do futuro

data de publicação27 Maio 2024 entrevista a
Laura Sofia Oliveira  |  Pediatra

A alimentação nas crianças é um dos grandes desafios da saúde do futuro. Fundamental para garantir o desenvolvimento físico, emocional e cognitivo da criança, uma alimentação saudável aprende-se em casa e pelos exemplos. Esta é a opinião da Dra. Laura Sofia Oliveira, Pediatra na Cintramédica, para quem “uma boa saúde” é a principal herança que os pais podem deixar aos seus filhos.
 

Costuma-se dizer que os primeiros 1000 dias de vida são os mais importantes. Até que ponto é importante a alimentação na primeira infância?

Primeiro que tudo temos de falar ainda da alimentação da grávida, que é fundamental. Grande parte do desenvolvimento neurológico do bebé dá-se in utero e esse desenvolvimento pode ser influenciado por aquilo que a mãe ingere. Hoje em dia, cada vez se sabe mais sobre a epigenética, ou seja, o modo como a nossa expressão genética (os nossos genes) é modificada e influenciada por condições que nos são exteriores como, por exemplo, os alimentos que comemos. O exemplo clássico é o das abelhas, que têm todas os mesmos genes, mas que a rainha tem um desenvolvimento diferente porque tem uma alimentação diferenciada. Afinal, já diziam os gregos: “somos o que comemos”. 
Os 1000 primeiros dias de vida são importantíssimos porque a criança está em grande desenvolvimento. Obviamente destaco aqui a importância da amamentação. O leite da mãe, como costumamos dizer, é mágico! É diferente de mulher para mulher, de hora para hora, de bebé para bebé - se uma mãe tiver gémeos, uma maminha dá um leite e a outra maminha para o outro gémeo tem outro leite, para suprir as necessidades individuais de cada bebé. E vai influenciar o desenvolvimento físico e cognitivo da criança na primeira infância, pois claro! Tem probióticos e outros componentes muito importantes para o desenvolvimento das células e das conexões cerebrais. Eu digo que é magia. A natureza é sábia.
 

Mas a partir de determinada altura a criança começa a comer outros alimentos. Como é que esses alimentos vão influenciar a criança?

A partir dos 6 meses o leite materno sozinho não chega. É altura para se começar a introduzir uma alimentação complementar, nomeadamente rica em ferro, uma vez que as reservas de ferro que a mãe forneceu à criança durante a gravidez começam a chegar ao seu limite.
A alimentação é uma experiência, e como todas as experiências que temos na vida, sobretudo em criança, vão influenciar o nosso desenvolvimento. Quanto mais nós dermos, mais a criança aprende. Quando aparecem os primeiros dentes, quando se começa a mastigar, o contacto com os alimentos novos, com texturas novas, com sabores novos, o poder pegar, agarrar, tudo isso são experiências que a criança adquire e que, obviamente ficam no seu “disco rígido” de conhecimentos e de experiências novas para desenvolver cognitivamente. Tudo na vida também tem uma parte didática, digamos assim, e a alimentação não foge à regra.
 

A partir dos 3 anos, muitas crianças podem começar a ter acesso a bebidas açucaradas e ao fast food. Se consumidos de forma regular, de que modo este tipo de alimentos pode afetar o desenvolvimento da criança?

Infelizmente, às vezes até mais cedo do que aos 3 anos, e cada vez mais. E são alimentos que afetam o desenvolvimento e a saúde. Eu percebo que a vida das pessoas não é fácil. Hoje em dia é tudo a correr, muito stress, não há tempo para cozinhar, não há tempo para ir comprar alimentos, porque tudo isto requer tempo e trabalho. É muito mais fácil comprar coisas já feitas do que estar a fazer, e às vezes até é mais barato. Muitos pais não têm noção de que estão a dar aos seus filhos alimentos que não são saudáveis. Dou-lhe o exemplo das frutas ou sumos já confecionados. "100% natural", lê-se no rótulo. Mas depois vamos às letras pequeninas e estão cheios de frutose e sacarose, que são acúcares, e não são saudáveis, no meu entender. E depois é muito difícil de tirar. Depois da criança se habituar, nenhuma fruta natural tem a doçura de um sumo, porque o gosto, o paladar, também se treina.
 

E o que é que os pais podem fazer? O que recomenda?

Eu acho que o melhor é sempre prevenir e não dar, ou pelo menos, limitar, e quanto mais tarde se der acesso a esses produtos melhor. Também faz parte da vida fazerem-se alguns disparates alimentares. Não podemos ser fundamentalistas e dizer que agora só se pode comer peixe cozido (risos). Mas temos de ser equilibrados e tem de se limitar, e dizer "ok, é uma vez por semana". Por exemplo, vamos falar de doces: "um doce uma vez por semana". E ponto! Comeu um chocolatinho. Mas depois esqueceu-se que ao longo da semana comeu bolachas com chocolate, comeu isto, comeu aquilo, já se descontrolou!
Mas às vezes no próprio pão, as pessoas não sabem, e eu acho que devia haver mais informação. Por exemplo, sei que os miúdos comem muito aqueles pães-de-leite, embalados, e são alimentos com imensos conservantes, têm muito acúcar, e não são mesmo nada saudáveis. São “molinhos”, fáceis e rápidos. Mas não são saudáveis. Aquilo que recomendo é que os pais não recorram a produtos embalados e pré-confecionados, ou seja, ultraprocessados.
 

De acordo com dados de um estudo da OMS, em 2022 quase um terço das crianças portuguesas entre os 6 e os 8 anos tinham excesso de peso e obesidade. De que forma este facto se pode repercutir no desenvolvimento e saúde destas crianças na próxima década?

É um dado muito preocupante, porque, como nós sabemos, a obesidade é uma epidemia silenciosa. Sabemos também que há cada vez mais doenças cardiovasculares, e metabólicas, como a diabetes, que antigamente apareciam em idades avançadas e, atualmente, aparecem em idades muito precoces. Há cada vez mais miúdos, e mais novos, já com diabetes tipo 2, com fígado gordo, com fibroses hepáticas. E depois dizemos que é uma epidemia silenciosa porque não dói, não se vê. Nem mesmo a família, às vezes, tem noção da gravidade. Se não fosse pelos nossos alertas [dos médicos] acabavam por não ter noção da gravidade e do risco que as crianças estão a ter.
 

Alguns estudos apontam para a influência da alimentação saudável no desenvolvimento cognitivo e num melhor desempenho académico. Na sua opinião, qual a importância das crianças terem contacto com uma alimentação saudável e com hábitos de vida saudáveis em casa para a sua saúde no futuro?

Na minha opinião a educação que temos em casa é a nossa base. Se não somos educados em casa, se não temos bons exemplos, não se podem esperar milagres. Se os pais comem mal, se há um pai que não come sopa, não pode exigir que a criança coma sopa, ou legumes. Ou peixe, que também se tem assistido a uma diminuição do seu consumo, sobretudo do pescado rico em ómega 3, as gorduras que nós chamamos boas, e que são positivas para o desenvolvimento neurológico.

Eu sei que o tempo é um recurso escasso, mas também é relativo. Se a pessoa se organizar acaba por conseguir ter tempo. Porque é um investimento que está a fazer. É um investimento na saúde da criança. Mais tarde ou mais cedo a alimentação vai-se repercutir, de uma maneira ou de outra, no futuro e na saúde da criança. E se a criança adoecer e tiver mais problemas de saúde, depois também vai consumir mais tempo aos pais. Eu acho que não há investimento que valha mais a pena, porque a saúde é o maior capital que podemos dar a uma criança.  

Entrevista a

Laura Sofia Oliveira

Pediatra